Bolsonaro, protestantismo e evangelho supermercado
Como pôde ocorrer a eleição, como presidente, de um homem mal preparado e sem uma mínima formação humanista, cujas ações e declarações absurdas, retrógradas e em conflito com os direitos humanos e sociais surpreendem a mídia internacional?
Tenho visto algumas explicações de fundo social, econômico e político; porém, com a humildade de um jornalista, e não de cientista social, me atrevo a chamar a atenção dos pesquisadores para uma determinante importante – ao que parece, até agora não considerada.
Uma excelente análise foi publicada no domingo, 7, na Folha, pelo professor Luiz Carlos Bresser-Pereira, deixando claro tudo ter começado em 2013, depois de uma longa gestação iniciada em 1980, deflagrada pela classe média.
O quadro fica bem claro e inteligível; dele está ausente, porém, a participação paralela de uma parcela da população aparentemente inativa, mas que está se formando, se agrupando, desde os anos 50 do século passado, e criando um segmento coeso e quase uniforme em termos de pensamento e comportamento, equivalente a quase 23% ou cerca de 1/5 da população brasileira (de 44 a 46 milhões de pessoas), ou a quinta parte dos 147 milhões de eleitores, ou mais de 32 milhões.
Refiro-me a um movimento de doutrinação, discreto, sorrateiro e quase sem alarde, feito junto às camadas mais pobres, periferias, pequenas cidades, por evangelistas missionários norte-americanos, iniciado entre 1950 e 60 e assumido depois por brasileiros, nem sempre com formação teológica acadêmica.
Para se ter uma ideia desse crescimento, basta citar estatísticas do IBGE mostrando a queda vertiginosa do número de católicos nos últimos quarenta anos. Em 1970, eram 91,8% da população, mas em 2010 baixaram para 64,6% e, hoje, são cerca de 60%. Se esse ritmo continuar, dentro de trinta anos – portanto, na metade deste século – católicos e evangélicos-protestantes terão igual número de fiéis.
Até os anos 1970, as denominações protestantes tradicionais representavam no máximo 5,2% da população brasileira. O proselitismo, que se fazia principalmente junto à classe média, obtinha resultados modestos. Havia uma grande preocupação das igrejas protestantes em orientar seus membros para a educação dos filhos, gerando uma ascensão social com boa formação profissional e boa formação colegial e universitária, dentro da tradição do protestantismo.
Com exceção dos protestantes luteranos, vindos da Alemanha e que se fixaram na região Sul do Brasil, os primeiros missionários vinham dos Estados Unidos. Muitos eram originários do sul dos EUA, logo depois da Guerra Civil (1861-65). Politicamente, opunham-se a Abraham Lincoln e preferiram emigrar a aceitar a derrota.
Ainda havia poucos protestantes brasileiros quando a República recém-proclamada fixou, em sua primeira Constituição – de influência positivista e laica, pois não mencionava Deus no preâmbulo – a separação entre Igreja e Estado, mesmo diante do descontentamento do clero católico. Isso permitiu aos protestantes terem igrejas e escolas, sem problemas de registro civil para nascimentos e casamentos, já que os cartórios não estavam mais subordinados à Igreja Católica.
Os presbiterianos, que haviam chegado ao Brasil em 1859, criaram, logo depois de proclamada a República, a Escola Americana, em São Paulo, que mais tarde se transformaria no atual Instituto e Universidade Mackenzie. Quatro anos antes, tinha sido criada a primeira Igreja Evangélica Fluminense, onde a esposa do primeiro pastor, Sarah Poulton Kalley, reuniu as partituras e traduziu todos os cânticos religiosos das igrejas norte-americanas na coletânea Salmos e hinos, utilizada até hoje pela quase totalidade das igrejas protestantes brasileiras.
A laicidade durou no Brasil até 1934, quando Getúlio Vargas, sob pressão da Igreja Católica, permitiu o ensino religioso nas escolas e os protestantes precisaram se tornar discretos para não perder as posições conquistadas. A laicidade só foi restabelecida lentamente, depois de 1945, com o retorno à democracia.
As denominações evangélicas Assembléia de Deus e Congregação Cristã do Brasil foram criadas no país no começo do século passado. A primeira, por missionários suecos no Pará e no Amazonas; a segunda, por missionários italianos no Paraná e em São Paulo. Suas igrejas são autônomas e se espalharam por todo o Brasil, reunindo cerca de vinte milhões de fiéis.
O movimento evangélico atual tem origem mais recente. Começa praticamente com a chegada da Igreja Congregacional do Evangelho Quadrangular, em 1953, trazendo a chamada “cura divina”. Pastores americanos, acompanhados de intérpretes, enchiam salas e grandes auditórios em São Paulo com muitos curiosos e doentes em busca da saúde, com sua pregação de que “Deus cura”. Quase ao mesmo tempo, surgiu a Cruzada Nacional de Evangelização, também baseada na “cura divina”.
Três anos depois, em 1956, Manoel de Mello, da Igreja Pentecostal, cria a Igreja Brasil para Cristo, que se alastra por cidades e reúne centenas de milhares de fiéis em pouco tempo. Segue-se, em 1962, a Igreja Deus é Amor, criada por David Miranda na Vila Maria, bairro pobre de São Paulo, conhecido politicamente por ter sido o reduto de Jânio Quadros.
Surge também a Igreja Internacional da Graça de Deus. A mais importante, porém, criada em 1977 pelo funcionário público Edir Macedo, é a Igreja Universal do Reino de Deus. A igreja se alastrou, enviando missionários para os países de língua portuguesa, e passou a ter um programa de rádio. De 1986 a 1989, Edir Macedo viveu nos Estados Unidos e, logo ao retornar, em 1990, comprou a TV Record e abriu uma frente política, elegendo três deputados federais.
Esses são os ramos principais, pois quando ficou claro haver um campo aberto de pessoas atraídas pela pregação evangélica, foram sendo criadas igrejas, congregações e salas de culto autônomas por pastores improvisados, sem qualquer formação – muito menos teológica -, a pretexto de terem a revelação de Deus para interpretar as Escrituras. Um fator bastante influente no boom das igrejas evangélicas foi a isenção tributária, da qual passaram a gozar depois da Constituição de 1988, e que, nas pequenas congregações, pode beneficiar o pastor. Igrejas (de todas as religiões, não só evangélicas) não pagam IPTU nem imposto de renda sobre os dízimos arrecadados, nem IPVA sobre os carros que possua, e nem o ISS, o imposto municipal.
O presidente Lula sentiu a importância dessa vaga dos chamados “evangélicos”, que se diferenciavam dos protestantes tradicionais, e procurou manter bons contatos com suas lideranças. Sua sucessora, Dilma Rousseff, procurou seguir a mesma trilha e esteve pessoalmente na inauguração do Templo de Salomão, da Igreja Universal.
Em 2013, porém, quando Dilma perdeu o controle econômico e o apoio precário da classe média, as lideranças evangélicas souberam ter chegado sua hora de agir. Discretamente, já haviam espalhado entre os “crentes” o boato de que Temer era “satanista”. Com os processos da Lava Jato, era fácil colocar os crentes contra a corrupção e denunciar Lula e os petistas como comunistas ateus, inimigos de Deus. Iniciaram, então, um processo eficiente de demonização do petismo e do lulismo, preparando-se para ter um peso maior na política brasileira.
A cereja em cima do bolo foi o batismo de Bolsonaro (que, nem por isso, deixou de ser católico) por imersão, nas águas do bíblico rio Jordão, em Israel. Nessa altura, as lideranças evangélicas já haviam obtido uma união sagrada e se preparavam para um grande desafio: lançar Bolsonaro como o candidato à presidência de todos os evangélicos.
Os cristãos evangélicos têm uma ligação profunda com Israel, embora geralmente a extrema-direita seja antissemita, mas um tanto perversa – de acordo com o livro Apocalipse, da Bíblia, haverá uma grande destruição ali em Israel: será a Guerra do Armagedom, precedendo o retorno de Jesus Cristo. Ligação perversa porque esperam, na verdade, a destruição de Israel para terem acesso à Jerusalém celestial.
Por coincidência, Jair é também “Messias” e assim se tornou o “mito”. Embora o próprio Cristo, na Bíblia, separe a política da religião com a célebre frase “a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”, os líderes evangélicos sucumbiram à tentação do poder temporal e fizeram campanha direta ou indireta para seus cordeiros votarem em Bolsonaro para presidente, mesmo se suas declarações, como deputado, nunca tivessem sido de um “homem temente a Deus”, como se diz nas igrejas. Só numa coisa a posição de Bolsonaro coincidia com a da Bíblia: ambos são homofóbicos.
Um fator político favorecia ainda mais o lançamento de Bolsonaro: os “protestantes históricos”, com pastores de formação universitária com curso de teologia e boa cultura, tinham sido induzidos por seus líderes, durante o golpe de 1964, a apoiar os militares, rejeitar o Conselho Ecumênico das Igrejas e tornar-se fundamentalistas. A Igreja Presbiteriana chegou mesmo a fazer uma limpeza entre seus líderes juvenis, pastores e membros suspeitos de ter preocupações sociais.
Resumindo, o protestantismo brasileiro já havia negado sua tradição humanista de defesa do direito de expressão, da livre interpretação das Escrituras, do respeito do indivíduo e das preocupações sociais inspiradoras da própria Reforma ao tornar-se cúmplice do golpe militar de 1964.
Sua versão evangélica facilitada, de importação, que poderíamos chamar de “evangelho de supermercado” ou “evangelho de fácil consumo”, não enfrentava nenhum empecilho pela frente e, para se expandir, no contraponto à modernização da vida rural e urbana, abraçou ideias retrógradas, o conservadorismo, o controle da liberdade, e recompôs o padrão antigo das famílias tradicionais sob vigilância, mantenedoras de tabus e de comportamentos rígidos.
Discrição e decoro no vestuário, restabelecimento dos tabus sexuais, virgindade preservada até o casamento, não participação em festas mundanas, centralização das atividades sociais na igreja com os “irmãos crentes”. Criaram um mundo paralelo evangélico. A proibição da posse de televisão por muitas congregações, a falta de hábito e de recursos para ler jornais facilitam a manipulação política dessa sociedade paralela mal informada, vulnerável às diretrizes transmitidas pelos pastores.
Ao contrário do que poderiam pensar os não crentes, essa vida regrada, vigiada por Deus, a defesa das virtudes, o contato domingueiro semanal com seus “irmãos”, no qual reforçam o conhecimento da Palavra de Deus e seus laços sociais, geram uma sensação de segurança, principalmente quando são – e é o caso da maioria – pessoas de baixo salário, vivendo de trabalhos cansativos durante a semana, sem acesso a distrações.
Para eles, os pastores trouxeram também, nos anos 1990, além da certeza da vida eterna, a bênção divina de progredir no seu trabalho, de poder ter o sustento de suas famílias e sua casa própria. É o “Evangelho da Prosperidade”, uma espécie de teoria do otimismo de Ralph Emerson adaptada ao Evangelho. E parece funcionar o poder do pensamento positivo, aconselhado por Norman Vincent Peale em seu best-seller, pois os evangélicos, embora entreguem o dízimo de seus salários para a igreja, garantem prosperar economicamente.
Sem dúvida, o evangelismo no Brasil, como todas as outras religiões, tem como objetivo inspirar pessoas a seguir os ensinamentos de Cristo, tornando-se bons cidadãos e pessoas felizes. As pessoas são livres para crer ou não crer, direito assegurado pela Constituição. Mas pode haver abusos. É o caso mostrado no filme Elmer Gantry, de Richard Brooks e com Burt Lancaster, baseado num livro de Sinclair Lewis e premiado com três Oscars em 1961. O filme conta a história de um pastor evangélico, Elmer Gantry, no período de reavivamento espiritual nos EUA entre as duas guerras mundiais, empenhado na luta contra o alcoolismo e pelo fechamento dos bordéis. Na verdade, um charlatão.
Enfim, o fator evangélico não pode ser ignorado na análise sociológica e política do Brasil. Mesmo porque, o evangelismo continua em expansão, tendo sido o fator principal na eleição do presidente Bolsonaro, havendo a promessa presidencial de colocar um evangélico no STF, já tendo sido anunciada a candidatura de um pastor evangélico como vice de Bolsonaro em 2022, fora o grande número de seus representantes no Parlamento. Leis, decisões judiciárias e programas escolares poderão ser alterados, colocando em questão a laicidade brasileira.
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