Vamos por partes: a Igreja de certa forma é reflexo de sua sociedade. Sendo o Brasil um país com questões raciais mal resolvidas e racismo estrutural o mais natural é que a Igreja reflita estas realidades de alguma forma. O contrário seria notável: imaginem um país com mentalidade colonial que possuísse uma igreja de mentalidade completamente a frente das idiossincrasias do povo? Até poderia, caso a Igreja se firmasse mais no Evangelho. Mas esta é outra conversa. O que é preciso definir é que sim, há traços de racismo na igreja evangélica por diversas razões. Um caso que ilustra bem esta realidade ocorreu em uma das Assembleias de Deus em Jacobina, quando um pastor constrangeu uma irmã de sua congregação anunciando diante de todos que ela não seria batizada com aquele cabelo (o cabelo crespo, dado a ela por ninguém menos que o próprio Criador). O pastor sustentou que usar cabelo natural não seria “coisa de crente”. Coisa de crente?
Vejamos: as principais denominações pentecostais clássicas vieram ao Brasil pelas mais de missionários europeus — a Congregação Cristã no Brasil com Luigi Francescon (na verdade a CCB é uma dissidência da denominação original Assembleia Cristã, mas esta é outra história) e a Assembleia de Deus pelos suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg. Ambos enfatizavam uma rígida agenda de costumes que se baseava em muito na visão de moral e bons costumes anterior as suas denominações, com um imaginário forjado na cultura europeia. Isso provocaria nos anos seguintes alguns conflitos entre religiosos ultraconservadores destas igrejas e a realidade brasileira. O padrão de beleza que impera ainda hoje em algumas localidades é um tanto quanto incompatível com os padrões nativos, o que é próprio do negro brasileiro costuma ser informalmente encarado com desconfiança.
Quem escreve estas linhas foi criado na CCB e sabe bem do que diz. Mas havia a segregação e o racismo norteando abertamente práticas destas igrejas? Difícil dizer. A impressão maus correta é de que as igrejas estão em consonância com o próprio ethos brasileiro com algumas noções ancestrais herdadas de seus fundadores. Nada muito além disso. As igrejas históricas possuem uma doutrina teologicamente mais coesa e normalmente mais cristocêntrica que as inúmeras seitas pentecostais e neopentecostais, ainda assim refletem em alguma medida o pensamento brasileiro. Faz parte. No entanto esta mesma igreja evangélica é majoritariamente parda e preta: boa parte dos cristãos evangélicos se declara preta ou parda, 58% de acordo com o último levantamento do DataFolha. Mais uma vez a a complexidade tupiniquim se fez presente.
Agora voltamos a pergunta: um país com nossa realidade precisa de uma teologia negra? Não, de forma alguma. Como cidadão negro preocupado com questões sociais e defensor dos Direitos Humanos afirmo de forma categórica que não precisamos de nada disso. Novos autores são sempre bem vindos, para a igreja brasileira é sempre uma bênção quando novos autores nos são apresentados. Por questões históricas o que conhecemos em termos de teologia normalmente vem dos Estados Unidos e Europa anglo-saxã por uma questão óbvia: trata-se do mundo original do protestantismo. Autores de origem asiática, africana e latino-americana são sempre bem vindos. Mas o portador da mensagem não importa, o que nos importa é se a mensagem é de Cristo.
É bom não perder este norte de vista: o que importa na teologia é Cristo. Quem quer que absorva sua mensagem será salvo, e isso está muito além de nossas aflições temporárias. A missão da teologia não é resolver os problemas do mundo caído, mas sim fornecer ferramentas para a boa compreensão do Evangelho — que é o poder de Deus. Quanto aos problemas do mundo caído, qualquer cristão realmente salvo saberá que não há resolução para o mundo ou para o homem, a criação corrompida pelo pecado original caminha de forma lenta e gradual para o colapso “ porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23). O que é possível é fazer refletir em nós a glória de Deus por meio de nossa postura cidadã. Por óbvio podemos louvar a Ele por meio de nossas posições públicas, combatendo a injustiça, defendendo os mais vulneráveis e denunciando a corrupção. O que deve pautar nossa conduta é o Evangelho, e ele nos conduzirá de forma irrepreensível: o cristão não condescende com o racismo, com a violência contra a mulher, com o elitismo, xenofobia ou extremismos de qualquer ordem. Tentará amenizar o sofrimento na terra dentro de suas possibilidades, será sensível a dor causada pela desigualdade e outras mazelas. Não apoiará a tortura ou qualquer violação aos direitos humanos ao mesmo tempo em que saberá discernir o que é correto do que é injusto, mal é que atenta contra a palavra de Deus. Isso basta. “ Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” (Mt 22:37). Quem faz o contrário se conduz o faz por sua própria conta ainda que diga em plenos pulmões que é um cristão cidadão de bem (coisa que não existe, já que somos todos pecadores).
Os que hoje advogam pela tal Teologia Negra infelizmente praticam um desvio de finalidade. Sendo o Evangelho a palavra de Deus para a salvação do Homem, o que fazem na prática é reduzir seu objetivo para um simples ideário político e filosófico. Isso é muito pouco comparado ao peso da Glória. Sem maior autoridade teológica posso afirmar com tranquilidade que o Evangelho é muito maior que qualquer outra coisa que exista no mundo, sua dimensão é incomensurável para nós, portanto não é possível enquadrá-lo em qualquer reducionismo político. Simpatizo muito com quem milita por direitos civis para o povo negro e considero inegável esta necessidade, mas mesmo isto é menor que o reino dos céus. “Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”(Gl 3:28).
O cristão não pode perder seu norte sob o risco de se esquecer da Salvação e se entreter com as distrações do caminho. “ De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus”, ( 2Co 5:20). Para nós negros engajados na luta contra o racismo e por direitos humanos, um exemplo cuja menção soa clichê é Martin Luther King Jr. Ainda que alguns torçam o nariz por conta de algumas acusações de adultério, é inegável o quanto sua mensagem e luta eram cristocêntricas a ponto de irritarem os radicais do naipe de Malcolm X (que pouco antes de ser assassinado reconheceu que foi injusto em algumas de suas críticas). Cristianismo é Salvação, não é ferramenta político-ideológica. É bom lembrar que não há nada de novo em instrumentalizar a palavra de Deus para propósitos terrenos, isso já é feito por extremistas mundo afora e canalhas de toda sorte — desde a Klu Klux Klan até o bolsonarismo. A diferença entre o Pacto de Lausanne e a Missão Integral brasileira está justamente aí: o primeiro procurou entender os fenômenos contemporâneos para buscar no Evangelho a melhor forma de lidar com estas questões, já o segundo não passa de desvio de finalidade ao trocar a salvação por uma troca meritocrática: lute por Justiça Social e será salvo. De novo lembro que não tenho qualquer autoridade teológica, sou apenas mais um servo cuja opinião não vale mais que um saco de farinha. Ainda assim estas linhas foram concebidas com a cuidadosa observância do Evangelho. Como somos fracos, a tão aguardada Segunda Vinda nos parece uma eternidade. Alguns até esquecem dela e desviam o propósito de Deus para uma suposta teocracia bolsonarista, para o governo Trump ou para o socialismo. Deve ser por isso que o apóstolo Paulo escreveu: “ Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho; O qual não é outro, mas há alguns que vos inquietam e querem transtornar o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema”, (Gl 1:6–8).
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